Fragmentados


Título: Fragmentados (Unwind Distology #1)
Título original: Unwind
Autor: Neal Shusterman
Editora: Novo Conceito
Páginas: 368
ISBN: 9788581635194

"Você sabe, um conflito sempre começa com uma questão: uma diferença de opinião, uma disputa. Mas, no momento em que vira uma guerra, a questão não importa mais, pois agora tem a ver com uma única coisa, e apenas com ela: o tamanho do ódio que um lado tem pelo outro". (p. 208)

Para acabar com a Guerra de Heartland, onde de um lado havia o exército Pró-Vida e, do outro, o Pró-Escolha, criou-se A Lei da Vida, lei que foi possível ser criada a partir do aperfeiçoamento do neurotransplante, técnica onde cada parte do doador pode ser usada em um transplante. Com essa lei a vida humana não poderia ser tocada desde o momento da concepção até a criança atingir a idade da razão, estabelecida aos 13 anos. A partir dessa idade até os 18 anos qualquer jovem poderia ser "abortado" retroativamente sem ter sua vida realmente encerrada, basta seus pais ou responsáveis assinarem um termo se assim desejarem. O jovem "abortado" ou fragmentado tem todas as partes do seu corpo reduzidas a pedaços transplantados naqueles que necessitam (alguns nem tanto), desde alguém que sofreu um acidente ou tem uma doença até alguém que deseja uma mão mais nova e sem rugas.

E é nesse futuro distópico com cara de terror que Neal Shusterman nos apresenta três personagens bem distintos:

Connor é um rapaz de dezesseis anos que tem um temperamento estourado e se mete muito em brigas e que acaba descobrindo que seus pais assinaram uma ordem de fragmentação para ele.

Risa é uma garota de quinze anos que vive sob a tutela do Estado desde que nasceu. Tem um comportamento exemplar, tira ótimas notas e é muito boa pianista, mas é preciso abrir espaço para novos tutelados e Risa é descartável nesse momento.

Lev, por fim, é o décimo filho de uma família rica e religiosa, ele é um dízimo, ou seja, uma "doação". Aos treze anos de idade ele se sentia feliz por ser um dízimo, sempre soube que seria fragmentado e isso sempre foi motivo de orgulho, pois estaria servindo tanto a Deus quanto à humanidade. 

Enquanto Connor sabe que a única forma de escapar da fragmentação e se manter, literalmente, inteiro, é fugindo e desertando, não só por alguns dias, mas pelos próximos dois anos, Risa não vê escapatório e Lev está contente com o seu destino. Mas o caminho desses três jovens acaba se cruzando de forma inesperada e juntos partem em uma fuga desenfreada.

Com uma narrativa em terceira pessoa que faz com que o leitor possa ter uma visão mais ampla dos acontecimentos e capítulos curtos que vão se intercalando entre os personagens, Fragmentados consegue dosar bem suspense e ação, além de trazer personagens que contribuem para o bom desenvolvimento da trama. E, por falar nos personagens, é Lev quem mais surpreende o leitor. Ele é o personagem mais profundo, que traz grandes questionamentos e que muda diversas vezes no decorrer da história. Lev é, mais do que qualquer coisa, absurdamente humano. 

Fragmentados é um livro que realmente prende a atenção e todas as questões inicialmente não resolvidas são esclarecidas no final, fechando o livro de forma bastante satisfatória, apesar de ser uma série. As questões que o autor traz são bem interessantes, como por exemplo: quando se dá início a consciência e quando ela termina? A alma existe e, se existe, onde ela se encontra? O livro também trata de temas como adoção, abandono de crianças, doação de órgãos, alienação, fé etc. No entanto, nenhuma dessas questões ou temas é abordado de forma profunda e, acredito que mesmo sendo um livro voltado para o público mais jovem o autor poderia sim, ter se aprofundado mais. Mesmo assim, Fragmentados é uma boa dica de leitura para quem está começando suas leituras dentro desse gênero e busca por reflexões que venham dar início a muitas outras (e, é claro, tantas outras leituras).


França


Polônia


Espanha


Indonésia


Alemanha

2666


Título: 2666
Autor: Roberto Bolaño
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 856
ISBN: 9788535916485

Lançado em 2004, um ano após a morte do autor, 2666, calhamaço com 1.100 páginas na versão espanhola, de acordo com as instruções do autor, deveria ser publicado em cinco livros (cada um correspondendo às cinco partes do romance), lançados um por ano. Roberto Bolaño fazia isso para assegurar o futuro econômico dos filhos, no entanto, após a morte do autor e depois da leitura e do estudo da obra, levou-se em conta o valor literário da obra, sendo ela publicada em um só volume. 

Mas, para falar de 2666, é preciso falar de cada uma de suas partes que se interrompem abruptamente e ao mesmo tempo se interligam. 

Na primeira parte, A parte dos críticos, somos apresentados a quatro intelectuais europeus, o francês Pelletier, o italiano Morini, o espanhol Espinoza e a inglesa Norton, unidos pela obsessão que nutrem por um autor alemão recluso do qual não se tem notícias. Observamos a relação entre os quatro intelectuais, que criam o mito do autor, confabulam e especulam. E é Amalfitano, personagem que será explorado na segunda parte e que surge aqui como guia dos quatro europeus em uma busca por Benno von Archimboldi, que consegue expressar de forma precisa o comportamento do intelectual.

"Por sua vez, os intelectuais sem sombra estão sempre de costas e, portanto, a não ser que tivessem olhos na nuca, é impossível verem o que quer que seja. Eles só escutam os ruídos que saem do fundo da mina. E os traduzem ou reinterpretam ou recriam. Seu trabalho, nem é preciso dizer, é paupérrimo. Empregam a retórica ali onde se intui um furacão, tentam ser eloquentes ali onde intuem a fúria desbragada, procuram ater-se à disciplina da métrica ali onde só resta um silêncio ensurdecedor e inútil. Dizem piu-piu, au-au, miau-miau, porque são incapazes de imaginar um animal de proporções colossais ou a ausência de um animal". (p. 127)

Da amizade surge um triângulo amoroso, e mais uma vez surge a obsessão. Mais amena e "lógica", A parte dos críticos não deixa de flertar com a violência e a loucura. 

Quando os quatro intelectuais conseguem uma pista para o suposto paradeiro de Archimboldi, partem para Santa Teresa, cidade fronteiriça no México, menos Morini, devido aos seus problemas de saúde. 

Assim partimos para a segunda parte, A parte de Amalfitano, onde conhecemos mais um pouco o professor chileno que vive em Santa Teresa com sua filha Rosa e que foi abandonado pela mulher. Nesta segunda parte temos o retrato de um homem cuja tristeza e a solidão, o vazio e a paranoia, levam-no a perder a razão.

"De que se trata a experiência?, perguntou Rosa. Que experiência?, perguntou Amalfitano. A do livro pendurado, disse Rosa. Não é nenhuma experiência no sentido literal da palavra, disse Amalfitano. Por que está ali?, perguntou Rosa. Me passou pela cabeça de repente, respondeu Amalfitano, a ideia é de Duchamp, deixar um livro de geometria pendurado às intempéries para ver se aprende alguma coisa da vida real. Você vai destruí-lo, disse Rosa. Eu não, replicou Amalfitano, a natureza". (p. 196)

Mas, mais do que louco, Amalfitano parece alguém extremamente sensível, alguém que encontrou seu ponto de ruptura numa existência que perdeu o sentido. 

Nessa segunda parte também ficamos sabendo dos crimes que estão ocorrendo em Santa Teresa, crimes que serão explorados na quarta, e maior parte, do livro, crimes brutais contra mulheres que assustam Amalfitano que teme pela vida de sua filha. 

O retrato de uma cidade desoladora leva à terceira parte, A parte de Fate, onde observamos uma paisagem ainda mais avassaladora e o prenúncio de uma atmosfera sombria. Fate é um jornalista negro que escreve sobre temas políticos e sociais em Nova York que acaba de perder a mãe e vai até Santa Teresa para cobrir uma luta de boxe. Mas antes disso ele vai para Detroit escrever sobre Barry Seaman, um dos fundadores dos Panteras Negras, e é numa fala de Seaman em uma igreja que encontramos um belo, ora cômico, discurso, sobre o mar, as estrelas, costeletas de porco e livros.

"Ler é como pensar, como rezar, como conversar com um amigo, como expor suas ideias, como ouvir as ideias dos outros, como ouvir música (sim, sim), como contemplar uma paisagem, como dar um passeio pela praia". (p. 253)

Em Santa Tereza Fate se envolve com Rosa Amalfitano e diferentemente dos críticos e de Amalfitano, que estão comprometidos com o abstrato, os primeiros com uma figura que desapareceu, o segundo com questões existenciais, Fate está envolvido com o que há de concreto, com as coisas que o cercam e, assim, o leitor fica cada vez mais próximo da veia pulsante de 2666, como se a terceira parte fosse um vislumbre do inferno antes da queda.

A quarta parte e o centro da história, A parte dos crimes, situa-se em Santa Teresa, onde desde o início da década de 1990 centenas de mulheres são assassinadas e encontradas em lixões, terrenos baldios e no meio do deserto, muitas vezes verificando-se que foram violentadas e com os corpos mutilados. Bolaño, que viveu na Cidade do México, baseou-se em Ciudad Juárez, que se tornou conhecida pelo número insano de mulheres mortas durante esse período. 

São páginas e mais páginas (mais de 200) relatando como as mulheres foram mortas, como em um relatório policial. São crimes bárbaros mas os casos logo são arquivados, muitos corpos não são identificados, sendo enterrados em valas comuns. Nem mesmo o desaparecimento das mulheres é reclamado e algumas prisões são feitas, um bode expiatório é escolhido, mas nunca se chega a uma conclusão satisfatória, enquanto mais mulheres morrem. 

A quarta parte é uma sequência infernal, puro horror e bestialidade, sem rodeios ou retoques, mas crua e brutal, indigesta e um retrato da impunidade e do mal. 

Por fim, na quinta parte, a Parte de Archimboldi, conhecemos o recluso autor alemão, desde a sua infância e também o acompanhamos no front da Segunda Guerra Mundial. Aqui o leitor parece conseguir respirar um pouco mais aliviado de início depois da leitura aterradora da parte anterior, mas logo encontramos novamente a violência e algo de solitário. 

Ler 2666 é uma experiência e tanto, um livro que não termina, mesmo depois da última página, porque é o tipo de livro que permanece na memória e modifica o leitor. Como classificar algo que não pode ser classificado? 2666 é assim. Trata de literatura e violência, loucura e solidão, trata do ser humano e essa fatalidade de ser.

Eu Te Darei O Sol


Título: Eu Te Darei O Sol
Título original: I'll give you the sun
Autor: Jandy Nelson
Editora: Novo Conceito
Páginas: 384
ISBN: 9788581636467

"Como sou capaz de ver as almas das pessoas às vezes, ao desenhá-las, sei o seguinte: a mamãe tem uma enorme alma de girassol, tão grande que mal sobra lugar para os órgãos. Jude e eu temos uma alma em comum que compartilhamos: uma árvore com folhas em chamas. E o papai tem um prato de larvas como alma". (p. 19)

Desde as suas primeiras células Noah e Jude estavam juntos. Vieram ao mundo juntos. E até os treze anos nunca escolheram coisas diferentes, se assim não fosse, seriam pessoas pela metade. Até que tudo muda quando os gêmeos se tornam pessoas bem diferentes um do outro, duas pessoas que não conseguem reconhecer o outro. Tudo começa quando disputam a atenção da mãe. A atenção do pai, ou a preferência, já é sabida, Jude é a queridinha. 

Quando os irmãos descobrem, ou pensam descobrir quem a mãe prefere, a raiva e o ressentimento acabam distanciando os dois. Noah continua sendo o jovem solitário que é importunado pelos valentões, enquanto se perde nos seus desenhos e, mesmo quando não está desenhando com lápis e papel, está desenhando em sua cabeça, no seu museu invisível. Já Jude é uma garota extrovertida, com amigos e que surfa. Resumindo, Noah é um bolha e Jude é popular. 

No entanto, os dois compartilham o amor pela arte herdado pela mãe. Noah é um artista, extraordinário com seus desenhos e pinturas e se considera um revolucionário, já Jude parece não se sentir tão convencida de que é tão boa assim e não compartilha da mesma intensa paixão do irmão. Mesmo assim ambos se inscrevem para a escola de artes, mesmo que Jude só queira ir para a escola normal com seus amigos. 

Enquanto isso, Brian, um garoto novo na cidade, que carrega estrelas em uma mala, estremece ainda mais a relação dos irmãos, já bastante conturbada e em meio a segredos e mentiras e um acidente trágico, uma família acaba se prendendo dentro de cascas vazias e se perdendo uns dos outros. 

Eu Te Darei O Sol, de Jandy Nelson, é um livro belíssimo, cheio cores, texturas e sabores, delicado e encantador, que desperta no leitor diversas emoções e cativa do início ao fim. Narrado sob duas perspectivas, a de Noah, a partir dos seus treze anos e a de Jude, a partir dos seus dezesseis anos. Cada narrativa é única assim como os irmãos, que possuem personalidades distintas e culpas e segredos que carregam consigo. 

Durante a narrativa de Noah conhecemos um jovem apaixonado e criativo, que está se descobrindo sexualmente e a autora descreve essa parte com muita naturalidade, fazendo com que o leitor também se apaixone e sinta tudo como Noah sente, de forma intensa e sofrida, pura e dolorida. A narrativa de Jude, de início, pode causar antipatia pela personagem, sentimento que logo é deixado de lado quando conhecemos a personagem mais adiante, uma jovem hipocondríaca cujo único amigo é possivelmente uma invenção da sua cabeça: o espírito da sua avó Sweetwine, que deixou para a neta uma bíblia repleta de conselhos e crendices anotados ao longo dos anos por ela (que Clark Gable a tenha! É assim que a vovó Sweetwine chama Deus), o que torna Jude uma pessoa extremamente supersticiosa, algo extremamente cômico. 

Mas Jude também tem segredos que a machucam e muitas coisas que ainda não compreende e que a afastam do seu irmão. Os dois se repelem e vivem contando mentiras para si mesmos. A situação em casa não é boa e apenas resolvendo antigos mal-entendidos os dois podem seguir em frente, mas o amor, em todas as suas formas e níveis, compreende muitas coisas que são complicadas demais.