2666


Título: 2666
Autor: Roberto Bolaño
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 856
ISBN: 9788535916485

Lançado em 2004, um ano após a morte do autor, 2666, calhamaço com 1.100 páginas na versão espanhola, de acordo com as instruções do autor, deveria ser publicado em cinco livros (cada um correspondendo às cinco partes do romance), lançados um por ano. Roberto Bolaño fazia isso para assegurar o futuro econômico dos filhos, no entanto, após a morte do autor e depois da leitura e do estudo da obra, levou-se em conta o valor literário da obra, sendo ela publicada em um só volume. 

Mas, para falar de 2666, é preciso falar de cada uma de suas partes que se interrompem abruptamente e ao mesmo tempo se interligam. 

Na primeira parte, A parte dos críticos, somos apresentados a quatro intelectuais europeus, o francês Pelletier, o italiano Morini, o espanhol Espinoza e a inglesa Norton, unidos pela obsessão que nutrem por um autor alemão recluso do qual não se tem notícias. Observamos a relação entre os quatro intelectuais, que criam o mito do autor, confabulam e especulam. E é Amalfitano, personagem que será explorado na segunda parte e que surge aqui como guia dos quatro europeus em uma busca por Benno von Archimboldi, que consegue expressar de forma precisa o comportamento do intelectual.

"Por sua vez, os intelectuais sem sombra estão sempre de costas e, portanto, a não ser que tivessem olhos na nuca, é impossível verem o que quer que seja. Eles só escutam os ruídos que saem do fundo da mina. E os traduzem ou reinterpretam ou recriam. Seu trabalho, nem é preciso dizer, é paupérrimo. Empregam a retórica ali onde se intui um furacão, tentam ser eloquentes ali onde intuem a fúria desbragada, procuram ater-se à disciplina da métrica ali onde só resta um silêncio ensurdecedor e inútil. Dizem piu-piu, au-au, miau-miau, porque são incapazes de imaginar um animal de proporções colossais ou a ausência de um animal". (p. 127)

Da amizade surge um triângulo amoroso, e mais uma vez surge a obsessão. Mais amena e "lógica", A parte dos críticos não deixa de flertar com a violência e a loucura. 

Quando os quatro intelectuais conseguem uma pista para o suposto paradeiro de Archimboldi, partem para Santa Teresa, cidade fronteiriça no México, menos Morini, devido aos seus problemas de saúde. 

Assim partimos para a segunda parte, A parte de Amalfitano, onde conhecemos mais um pouco o professor chileno que vive em Santa Teresa com sua filha Rosa e que foi abandonado pela mulher. Nesta segunda parte temos o retrato de um homem cuja tristeza e a solidão, o vazio e a paranoia, levam-no a perder a razão.

"De que se trata a experiência?, perguntou Rosa. Que experiência?, perguntou Amalfitano. A do livro pendurado, disse Rosa. Não é nenhuma experiência no sentido literal da palavra, disse Amalfitano. Por que está ali?, perguntou Rosa. Me passou pela cabeça de repente, respondeu Amalfitano, a ideia é de Duchamp, deixar um livro de geometria pendurado às intempéries para ver se aprende alguma coisa da vida real. Você vai destruí-lo, disse Rosa. Eu não, replicou Amalfitano, a natureza". (p. 196)

Mas, mais do que louco, Amalfitano parece alguém extremamente sensível, alguém que encontrou seu ponto de ruptura numa existência que perdeu o sentido. 

Nessa segunda parte também ficamos sabendo dos crimes que estão ocorrendo em Santa Teresa, crimes que serão explorados na quarta, e maior parte, do livro, crimes brutais contra mulheres que assustam Amalfitano que teme pela vida de sua filha. 

O retrato de uma cidade desoladora leva à terceira parte, A parte de Fate, onde observamos uma paisagem ainda mais avassaladora e o prenúncio de uma atmosfera sombria. Fate é um jornalista negro que escreve sobre temas políticos e sociais em Nova York que acaba de perder a mãe e vai até Santa Teresa para cobrir uma luta de boxe. Mas antes disso ele vai para Detroit escrever sobre Barry Seaman, um dos fundadores dos Panteras Negras, e é numa fala de Seaman em uma igreja que encontramos um belo, ora cômico, discurso, sobre o mar, as estrelas, costeletas de porco e livros.

"Ler é como pensar, como rezar, como conversar com um amigo, como expor suas ideias, como ouvir as ideias dos outros, como ouvir música (sim, sim), como contemplar uma paisagem, como dar um passeio pela praia". (p. 253)

Em Santa Tereza Fate se envolve com Rosa Amalfitano e diferentemente dos críticos e de Amalfitano, que estão comprometidos com o abstrato, os primeiros com uma figura que desapareceu, o segundo com questões existenciais, Fate está envolvido com o que há de concreto, com as coisas que o cercam e, assim, o leitor fica cada vez mais próximo da veia pulsante de 2666, como se a terceira parte fosse um vislumbre do inferno antes da queda.

A quarta parte e o centro da história, A parte dos crimes, situa-se em Santa Teresa, onde desde o início da década de 1990 centenas de mulheres são assassinadas e encontradas em lixões, terrenos baldios e no meio do deserto, muitas vezes verificando-se que foram violentadas e com os corpos mutilados. Bolaño, que viveu na Cidade do México, baseou-se em Ciudad Juárez, que se tornou conhecida pelo número insano de mulheres mortas durante esse período. 

São páginas e mais páginas (mais de 200) relatando como as mulheres foram mortas, como em um relatório policial. São crimes bárbaros mas os casos logo são arquivados, muitos corpos não são identificados, sendo enterrados em valas comuns. Nem mesmo o desaparecimento das mulheres é reclamado e algumas prisões são feitas, um bode expiatório é escolhido, mas nunca se chega a uma conclusão satisfatória, enquanto mais mulheres morrem. 

A quarta parte é uma sequência infernal, puro horror e bestialidade, sem rodeios ou retoques, mas crua e brutal, indigesta e um retrato da impunidade e do mal. 

Por fim, na quinta parte, a Parte de Archimboldi, conhecemos o recluso autor alemão, desde a sua infância e também o acompanhamos no front da Segunda Guerra Mundial. Aqui o leitor parece conseguir respirar um pouco mais aliviado de início depois da leitura aterradora da parte anterior, mas logo encontramos novamente a violência e algo de solitário. 

Ler 2666 é uma experiência e tanto, um livro que não termina, mesmo depois da última página, porque é o tipo de livro que permanece na memória e modifica o leitor. Como classificar algo que não pode ser classificado? 2666 é assim. Trata de literatura e violência, loucura e solidão, trata do ser humano e essa fatalidade de ser.

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